"Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi."

Fernando Pessoa

MADRUGADAS

09 junho 2010

ESTAVAS TRISTE

estavas triste quando morreste,
avô. há muito se despedia de nós
o teu corpo, os teus lábios azuis
de quem naufraga no mar
e não sabe o caminho de volta.

levaste contigo o riso das coisas
e quiseste que esquecêssemos o teu nome,
agora uma aragem fria que nos dói na voz
e faz das casas vertigem,
mas o teu nome agora é lume
por dentro de tudo
o que te pertenceu
e a mesa continua vazia de ti,
avô, e deixaste o teu toque
em todas as coisas:
nos livros que folheaste,
nas cartas que escreveste,
na pele cansada da tua viúva,
nos anos que levaste
a percorrer-nos por inteiro.

as tuas mãos, avô.
as tuas mãos a florir em todas as coisas,
as nossas mãos a vaguear nevoeiro fora
à procura de um qualquer significado
para já cá não estares.

estavas triste quando morreste,
e os dias acordavam-te nublados.
dissemos-te adeus com um poema
e um punhado de terra que agora é tua,
para te dizer que agora és também tu a terra
mas que a alma deixaste connosco
para sempre;

entregámo-nos assim, avô,
ao sal da tua ausência,
ao sal dos rostos e da tua morte
a encher os dias de silêncio
para nos ensinar que a tua dor
será para sempre nossa também.

João Coelho

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