"Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi."

Fernando Pessoa

MADRUGADAS

09 junho 2010

HOJE

hoje
o sol
inventou
o desabrochar

os campos
inventaram
as flores

as flores
inventaram
a terra

a terra
nasceu
do sangue

alguém
inventou
a chuva
de braços
sempre abertos

alguém
inventou
o mar
para
nos engolir
por inteiro

alguém
inventou
a sede
a saudade

alguém
em lágrimas
inventou
a saudade
e deu-a de comer
ao mundo

e eu
continuo assim
sem voo equivalente

as mãos
sempre
tão sujas
de palavras,

os dias
continuam assim,
vagabundos

e as chaves
continuam na mesa
sem uma porta
que lhes sirva

e tu sentas-te
e esperas
que o mundo
te sopre ao ouvido

com o sangue assim,
em ruínas, à espera
de um nome
que não o teu,
um nome que te sirva,
um corpo
que não o teu,
uma sombra
que não se extinga.

continuas assim,
e dás-me a tua morte
a beber,
abres-me as mãos
e dás-me a beber
da tua infância
como quem apodrece

e eu só pedia
que as minhas mãos
não fossem centopeias
nas tuas,
um nevoeiro
de aves

para não continuar assim,
sem voo equivalente.

JOÃO COELHO

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