"Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi."

Fernando Pessoa

MADRUGADAS

09 junho 2010

Cais

Pequenas aves de luz
saltam de lâmpada em lâmpada
a incendiar as ruas
lentamente.

Chovem cassiopeias
nas mãos abertas:
é noite, o frio aperta
e enrola-se nos ossos
a trazer-me todos os desertos
à boca.

A vertigem das palavras
na ponta dos dedos
a pouco e pouco: é noite:
basta um nome num mar de corpos
para dar uma voz mais quente
aos nossos gestos.

Alguém me escreveu algures:
com as mãos, com o lume aceso
dos silêncios, com o mel do verão:
todos os poemas, dizes-me,
são fracções de outros poemas;

mas onde desaguam as mãos,
afinal, no entardecer do sangue?

A dor repete-se,
a voz repete o peso do pó
sobre os lábios e as casas calam-se
num silêncio absurdamente silêncio:

hoje, morreu tudo na minha boca.

João Coelho

FEBRE

Dizes: tenho medo
que um dia o meu nome
já não beba dos teus lábios.

E eu digo: a minha voz
rema por estradas
de vento indeciso
e divide-se
por todas as aves
na noite mais pesada--

e uma delas há-de sempre
chegar a ti:
basta que nos percamos
na geografia dos corpos,
eu e tu.

João Coelho

Cianose

Nada me pertence;
as frases repetidas
e a inabalável cascata
dos versos: nada me pertence.

Anoiteces-me num mar negro
que se arrasta pelas ruasc
om a pressa das palavras
e já nada me pertence.

Se algo me sobrar de cada poema,
a solidão em estado líquido,
a vertigem e o sobressalto
ou a noite em estilhaços,
entorná-los-ei no teu peito
como quem morre
de dentro para fora
à espera do verão.

João Coelho

HOJE

hoje
o sol
inventou
o desabrochar

os campos
inventaram
as flores

as flores
inventaram
a terra

a terra
nasceu
do sangue

alguém
inventou
a chuva
de braços
sempre abertos

alguém
inventou
o mar
para
nos engolir
por inteiro

alguém
inventou
a sede
a saudade

alguém
em lágrimas
inventou
a saudade
e deu-a de comer
ao mundo

e eu
continuo assim
sem voo equivalente

as mãos
sempre
tão sujas
de palavras,

os dias
continuam assim,
vagabundos

e as chaves
continuam na mesa
sem uma porta
que lhes sirva

e tu sentas-te
e esperas
que o mundo
te sopre ao ouvido

com o sangue assim,
em ruínas, à espera
de um nome
que não o teu,
um nome que te sirva,
um corpo
que não o teu,
uma sombra
que não se extinga.

continuas assim,
e dás-me a tua morte
a beber,
abres-me as mãos
e dás-me a beber
da tua infância
como quem apodrece

e eu só pedia
que as minhas mãos
não fossem centopeias
nas tuas,
um nevoeiro
de aves

para não continuar assim,
sem voo equivalente.

JOÃO COELHO

ESTAVAS TRISTE

estavas triste quando morreste,
avô. há muito se despedia de nós
o teu corpo, os teus lábios azuis
de quem naufraga no mar
e não sabe o caminho de volta.

levaste contigo o riso das coisas
e quiseste que esquecêssemos o teu nome,
agora uma aragem fria que nos dói na voz
e faz das casas vertigem,
mas o teu nome agora é lume
por dentro de tudo
o que te pertenceu
e a mesa continua vazia de ti,
avô, e deixaste o teu toque
em todas as coisas:
nos livros que folheaste,
nas cartas que escreveste,
na pele cansada da tua viúva,
nos anos que levaste
a percorrer-nos por inteiro.

as tuas mãos, avô.
as tuas mãos a florir em todas as coisas,
as nossas mãos a vaguear nevoeiro fora
à procura de um qualquer significado
para já cá não estares.

estavas triste quando morreste,
e os dias acordavam-te nublados.
dissemos-te adeus com um poema
e um punhado de terra que agora é tua,
para te dizer que agora és também tu a terra
mas que a alma deixaste connosco
para sempre;

entregámo-nos assim, avô,
ao sal da tua ausência,
ao sal dos rostos e da tua morte
a encher os dias de silêncio
para nos ensinar que a tua dor
será para sempre nossa também.

João Coelho

POUSOU À JANELA

pousou à janela
uma escuridão profunda
enquanto te escrevo.

acredito (e sei)
que nunca vais ler estas palavras,
talvez por nos termos perdidono caos dos lábios
ou por nunca termos falado
a mesma linguagem,
mas são tuas; sempre o foram.

ouve-me: a
noite chegou por fim às nossas mãos
e há um nome que se repete
no indomável eco dos nomes:
não é o teu nome, nem o meu;nunca o foi.

dizias-me: há um cegar
por dentro do teu peito
que nunca será meu,
e tinhas razão.
nada em mim sabe negá-lo.

será isto morrer?
saber-te apenas paisagem?
saber haver aves
que abdicaram do voo
para que o teu corpo
me chegasse por inteiro?

o que eu sei é que pouco ou nada te sei.
é esta a verdade mais universal
enquanto te escrevo, assim,
sentado à mesma porta
que há anos abri à tua sede.

corrijo: nunca te soube,
e fizeste dos dias
um lugar impossível;

a noite inclina-se sobre as mãos
e há um cegar bem por dentro do meu peito
que nunca será teu nem meu
(nem de ninguém ao certo, sabes),
onde a única promessa
é a certeza da morte
e dos nossos gestos
como animais feridos.

é essa a verdade mais universal:
não haver mais nada
que possas querer levar daqui,
e que de mim levaste já quase tudo.

ouve: houvesse uma porta
por detrás de cada nome
que fosse a tua voz,
e só a tua voz,
para me negar
a impossibilidade
de voltar atrás,
e eu não teria
que te escrever assim,
como quem desiste
do seu próprio sangue
e da sua própria fome.

João Coelho

BRUMA

Gosto de te observar enquanto
Danças ao som daquela
Melodia inebriante
Que só tu percebes;

De te olhar enquanto
Me falas em tons de veludo
Que me fazem perceber a música,
Apanágio só teu;

De te amar enquanto
Me explicas como o amar
Não é senão um verbo
E aquilo que nos distingue
O doce flutuar do teu cabelo
Nas ondas do vento.

Moves-te como se a natureza
Fosse uma extensão do teu corpo
Percorrendo áleas e encostas
De vidro pintadas.

Admiro-te.

A ti e à forma como te desnudas da tua indumentária
De viandante e te disfarças de lascívia
Como se um regato nascesse do teu olhar
Por um qualquer capricho transcendente.

Só te quero ver assim,
Livre de prantos,
Deidade cintilante
No altar de todas as manhãs.

João Coelho

24 março 2008

PENSAMENTO/INEXISTÊNCIA


O sopro do que sou
Desceu devagarinho...
Reconheço-te.
Não com todos os sentidos,
Tão só com aqueles que inventamos
No nosso intimo espaço de inexistência...
A distância dos risos e dos corpos,
Tornou-se a nossa intimidade.
Vejo-te;
Com o teu sortido de idades misturadas,
Quando te olho,
Com o meu olhar passivo,
Habituado já
A esta forma de relativa entrega.
A vida que nos existe
Tornou-se assim, simples e complexa,
Numa verdade por existir,
Toda feita de presente que inibria,
Num lugar sem lugar...
Concentro-me em ti!
Sinto aromas por inventar,
Num casulo
Onde nada chega e tudo te dou.
Através da memória tão meiga de ti,
Eu existo...
Existo em deliciosas vertigens
De intimidade comigo mesma,
E vou, num crescendo,
Ao mais fundo de mim.
Deslizo para o interior
Do que me existe há muito,
Que desconheço ainda,
Mas que sei que me completa.
Tu...deste-me
Uma nova consciência do meu ser
Ainda em desordem;
Acaricias-me a alma nas minhas insónias!
Apavora-me
A inevitável intranquilidade
De ficar só com o meu interior
E ter que te deixar partir
Para a margem da minha história.
Tenho tanto para te viver.
Temos histórias que não contámos;
Horas que nos esquecemos de viver;
Temos sonhos contagiados
Que nos unem para sempre.
Não me abandones
No frio da minha madrugada.



DORA

21 março 2008

MONÓLOGO DE EXISTIR

Onde é que eu começo?
O teu cheiro será igual à minha vontade de ti?
Os meus cabelos e os teus dedos perdem-se no tempo dos ventos antigos,
Numa dimensão paralela.
E esta sombra do que sou,
Projecta-se no novo sonho de aura azul;
Nesses olhos imensos que só vejo com a alma;
Na tua extensão de mim
Que me impões,
Que me absorve,
Que me estimula e assimila,
Como o horizonte a puxar o sol do fim do dia – irremediavelmente...
As tuas estrelas pulsam nas palavras
Que não preciso dizer...
Lês os meus olhos sem que os vejas.
Nem precisas...
Cúmplice de mim,
Ansioso,
Flutuas na minha madrugada, algo opaco.
Desabo então para o interior dos meus excessos de existência...
Contigo
Num caudal de entendimentos novos,
sem clausuras,
Loucos... raros... únicos,
como se eu merecesse por fim!
Resistirei?
A infiltração quotidiana do teu ser, em horas confidentes
Escondidas nas madrugadas multicores,
Arrancam cintilações
Das palavras que me adivinhas.
Já não sou só um momento,
Sou o lume que veio ao meu encontro.
E sobes pela minha vida
Sem que eu o pressinta,
Enlouquecida de insónias!!!

DORA

ESTÁTICA

Voemos como aves de neblina
pelas penas da manhã
onde me esqueço
onde acabo e tu começas.

Acordemos soprando o pó
que dorme nos nossos lábios
enquanto as cortinas respiram
vultos como sóis enfermos,
poisemos nas vértebras do vento
e lancemos as horas pela janela;

Aqui, nascendo deste útero de vento,
desabemos em corpos de estática
enquanto ferimos a linguagem
da nossa própria carne,
respiramos as vagas
de um luar escuro
e engulimos o assobio das aves
de todas as meias-noites:

Trepemos os candeeiros de rouxinóis
onde a voz do fado se faz sentir
no suspirar do vento e segues
o rumo das constelações com cada suspiro.

Shh, eis que chega mais um pôr-do-sol
que murcha de encontro ao mar
como areias movediças,
branco ricochete de estrelas: dorme,
dorme que é tempo das nossas sombras
ronronarem como folhas ao vento:

Dorme.

João Coelho

ECOS


Tropeço, vagabundo,

no passeio inflamado;


O som de vozes

e passos repetidos

soa vago, ecoando

no meu peito.A


lua corre apressada

e entorna a sua cal

nos meus lábios.


"E se eu pousarno teu poema esta noite?"


Pousa; pousa e ler-te-ei.


João Paulo Coelho

FARPAS

Aqui me sento feito poeira irrequieta
e amarga que não me cabe no peito
a pensar que as horas caladas são um navio
de raiva e de lume e que o frio
range na janela como a cal dos rios;

aqui me deito eu de coração inclinado
sobre o bafejar das sílabas dormentes
a redescobrir o silêncio, convencido
de que o tempo é tão pesado
quanto a mão que o carrega,
abismo passageiro do corpo-ânsia.

Aqui me sento incansável
sobre a sombra da minha sombra
a ver o mar deslizar lento
(sempre lento) nos meus ombros
como um formigueiro debaixo
da língua indecisa,

teimoso em fingir que tenho
a morte a morder a lua
na minha mão febril e que já não sei
se é silêncio ou labareda
este som que arrepia
a distância e sacode o pó
das minhas pálpebras
quando finjo dormir.

19/2/8

João Paulo Coelho

20 março 2008

CONSCIÊNCIA CALADA

Suspensa na corrente dos meus dias incolores
Feitos de cansaços… de limites,
Espero ansiosa, temerosa,
Que a nuvem onde escondo as ilusões…
Me absorva nos meus sonhos de menina.
Só nela há conforto;
Para o corpo entristecido,
Para a alma desgastada,
Para o olhar recolhido de solidão…
Que nem são meus!
Única, serena, a minha nuvem;
Espaço de ternura morna que é abrigo,
De quem já nada espera fora dela.
Aí me vivo.
Revejo meus contornos desfocados
Como se o beiral onde pousam pássaros,
Não fosse a minha alma,
Como se nada fosse em mim o que vivi,
E as folhas outonais
Que noto caídas…
Não são páginas da minha vida,
São sim outras vidas em mim…
Que já passaram!
Penduro-me hesitante
Em pedaços dessa nuvem.
Procuro, insistente,
O lugar em mim onde há vontades
E sonhos por viver…
Mas eu sou, afinal,
A folha outonal envelhecida,
Apagada,
Caída há muito sem me ter apercebido!
DORA

16 março 2008

Espaço de Sons e Silêncio

Pára... deixa o teu sentir!